segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Deus Ex Machina parte 3: O aperto de mãos.

O deus-poeta embriagou-se em demasia de sonhos imorredouros e derramou sobre si o restante do conteúdo de sua taça. Todas as ameaças e aflições de seu passado começaram uma dança macabra onde os cadáveres de suas memórias sombrias copulavam com musas dementes. Aquela dramaturgia, que na sobriedade das horas parecia ser ínfima, tornara-se veneno psíquico aniquilando sensibilidades.
O impassível Beltessazar percebeu, enfim, que uma intervenção seria necessária:


- A solidão do paraíso personalizado é tão inútil quanto um inferno coletivo não é mesmo? – Uma trovejante ressonância alcançou a consciência vagueante de José Severino.
- Quem é você? – Os olhos de Zeca abriram-se como estrelas rubras.
- Direi apenas minha alcunha, que me é dada em tempos de turbulência: chame-me de Beltessazar.
- Cara, que nome ridículo. Serei direto: saia desse lugar. Não me importa se é Bebel, Belte-Salazar, Ypioca ou qualquer lixo desses. Finalmente estou livre de seus conflitos ordinários e mundos artificiais. Aqui, o tempo é uma piada sem graça, o espaço, um papel higiênico e sua presença, um motivo para dar a descarga...

Todo ambiente tornou-se uma instável mescla de miríades reflexivas de cores intensas e desbotadas. O manto de nebulosas de Zeca realçou-se com a aquela configuração atmosférica e ficou evidente que ele comandava cada detalhe de espaço com seus pensamentos. O ecoar da voz de Beltessazar era o único parâmetro supostamente sem controle:

- Primeiro, isso não é um lugar. Segundo, vim salva-lo de uma grande ilusão. Terceiro, está indo muito bem com as zombarias.
- Obrigado Bebel, posso caprichar ainda mais...

Zeca e seu desdém navalhado se apresentavam numa postura ofensiva mas, por algum motivo ainda obscuro, o visitante daqueles mundos internos era um muro de confiança e iniciou seu discurso:

- Por hora, vou dispensar seu talento fluídico com as palavras e com os símbolos de poder. Ouça-me com atenção e prometo que no fim, será você a fazer a escolha. Diga-me porque alguém que alcançou verdadeiramente sua visão maior, voltaria a fechar seus olhos?
- Eu sou aquele que decide que tipo de visão eu tenho...
- É verdade, mas não seja infantil: eu já entendi que você é o senhor de si mesmo e blá blá blá. Já entendi você acredita que o universo é um liquidificador de distopias sobrepostas e blá blá blá. Entendi que você se tornou o Deus de seu próprio vazio existencial. Mas cara, de que importou essa apoteose feita-em-casa para todo resto?
Abaixe suas armas: é hora de sair de si mesmo. De permitir que toda energia descoberta em si percorra os caminhos secretos dos ajuntamentos e repartições da Criação. Cada folha, gota e raio de luz há de sussurrar sua presença. Não são as palavras ou sua linguagem, os gestos ou sua potência que farão isso... Será apenas coragem. Coragem de tornar-se frágil mais uma vez. Uma coragem além dos mais divinos seres que você achou conhecer. Apesar de vencer o desconforto abissal, você ainda está em sua autarquia cósmica, como tinha dito há um tempo atrás.
-Você ouviu minhas palavras? – Zeca indaga perplexo.
-É claro que ouvi. Já deveria ter entendido que tem sempre alguém ouvindo. Às vezes não gostamos de quem escuta e é esse o desafio: dar valor às oportunidades mesmo quando elas se parecem mais com obstáculos do que com bênçãos. Infelizmente você está apenas comungando com seus devaneios de grandeza. Uma deliciosa prática de fato, contudo totalmente estéril. Respeito sua potência de expressão e é por isso que vim até aqui. Foi por isso que o percebi. Mas existe um mundo não esqueceu de você, embora seu triunfo sobre os limites da realidade daqueles cenários externos seja memorável.
- Porque insiste que eu volte?

Na enevoada confusão de cores, Beltessazar revela seu semblante a Zeca e aponta para o alto:

- Pelos Outros. Pelo seu amigo que dirige caminhões e que agora está preso. Por sua prima que acabou de ser contratada para dançar numa boate na Praça Mauá e vai precisar de você, e pelo outro Eu que você precisa descobrir através do Equilíbrio.
- E o que você ganha com isso?
- Ganho um amigo poderoso e um gênio autêntico, se tudo que eu estiver dizendo se confirmar...
- Qual é seu verdadeiro nome?
- Ou você é um autocrata sem nobreza ou ainda não entendeu que os nomes podem ser esquecidos. Aqui não há necessidade disso. Na roda dos mundos, é imperativo revelar-se apenas no momento mais adequado. Sou apenas um reflexo aos seus olhos e um sussurro familiar aos seus ouvidos e por hora, isso é suficiente. Venha, temos que comemorar porque parece que você venceu a história que foi frivolamente escrita para sua vida.
- Lembre-se que se você for apenas uma ilusão vou destruí-lo completamente.
- Lembre-se que se eu for apenas uma ilusão vou te destruir completamente.
- Se o que está me dizendo é verdade, há muito que fazer.
- Sim senhor Zombeteiro, há muito que fazer, por aqui...

O estranho estendeu o braço, e apesar do porre metafísico, Zeca simbolicamente apertou sua mão. De volta ao quarto não havia mais nada lá além de poeira e mobília revirada. Todas as lembranças do menino de 16 anos agora pertencem a alguém de 25 anos com uma nova aparência. Após nove giros da ampulheta, a recriação terminou. Zeca não sabia nada sobre o que seria daquele ponto em diante, mas decidiu prosseguir. Seu novo amigo começou as explicações...

Adivinhe só quem está contando...

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